“Ghost stories are also love stories”. Esta frase foi dita no vídeo de divulgação do novo livro de Siri Hustvedt, narrando sobre o luto em que vive depois da perda de seu companheiro de vida, o também escritor Paul Auster, e as histórias que construíram, lado a lado, compartilhando com os filhos, os livros e o neto recém-nascido. O vídeo traz uma série de imagens fotográficas ilustrando o texto curto mas comovente e com uma potência significativa de fazer sentir, na combinação dos estímulos visuais e auditivos, o vazio poético daquela presença ausente.
O primeiro livro do Paul Auster que eu li, e me apaixonei, foi The Invention of Solitude. Dividido em duas partes, a autoficção narra as reações decorrentes da perda de seu pai e o disparador para uma série de reflexões sobre a relação deles, os primeiros passos na carreira literária, tanto como poeta quanto como tradutor, alternando o ponto de vista entre primeira e terceira pessoa, provocando nossa leitura de memórias e fazendo-nos não duvidar de suas palavras, mas colocando em perspectiva nossas próprias lembranças de nós mesmos. Por meses, ou anos, sonhei em me debruçar sobre esta obra e quem sabe enfim iniciar o tal mestrado em estudos literários sobre o qual falo há anos. Era essa amarração dos afetos, do luto, das incompreensões parentais, filiais, os acordos e expectativas sociais e essa avalanche de sensações e pensamentos decorrentes da morte que me chamavam a me aprofundar.
Curioso pensar que ao perder meu pai em 2022 eu tenha quase que emudecido. Ou, ora veja, esta seja a forma meio torta pela qual me recordo principalmente daquele primeiro ano. Meio torta porque há provas documentais de que tive uma certa produção estimulada por todas essas reações que antes me impeliam a estudar o autor acima citado. Eram tantas imagens e uma necessidade de recordar, como se tivesse a oferecer um pedido de desculpas ao meu pai. Sim, a culpa, ela estava forte ali. E escrevi para me desculpar do que imaginei ter faltado. Mas apesar de toda essa datilografação incessante, os sons de fato emudeceram. Além de ter calado, era difícil recolher o som das histórias que ele me contava, com os detalhes, risadas, respirações profundas. Eu sentia ter perdido o que dele me constituía, e sem isso também não me reconhecia mais, enlutava também por quem eu era ao lado dele.
Entendido neste movimento o valor da construção de períodos compostos em orações subordinadas adjetivas explicativas o impulso que outro autor cativante por meio do mesmo tema, Karl Ove Knausgard, me causou há pouco mais de uma década. ‘A morte do pai’, título do primeiro volume da Saga Minha Luta (sim, o nome é polêmico e tudo se revela melhor com relação a esta referência no último volume), inicia com a descrição quase visual de uma parada cardíaca, causa da morte de seu pai (e do meu), também aqui disparador para a produção literária.
Numa obra que expôs toda sua família e a si mesmo, causando afastamentos e processos legais diversos, o norueguês relata em suas entrevistas, além do volume dedicado à escrita (A Descoberta da Escrita) a ficcionalização desenvolvida a partir de fragmentos de memória, tanto imagéticos quanto documentais. A reconstrução de si como personagem semiautobiográfico é um dos ganchos que o ligam, na minha cabeça, ao casal de autores acima.
Em inúmeras entrevistas de Siri assistidas enquanto faço minhas unhas semanalmente, uma das principais questões abordados é exatamente a maneira pela qual romantizamos nossas memórias, não apenas pelo aspecto da distância temporal, mas, talvez, principalmente, porque somos de fato enganados pelo nosso inconsciente ao retomar cada uma destas cenas a partir da maneira como fomos afetados por elas, sendo, portanto, não apenas uma perspectiva específica, mas de fato uma deformidade do acontecimento. Além disso, nossa imaginação divide o mesmo espaço que aquele dedicado à memória, ativando portanto os mesmos processos para relembrar e criar. Relembrar, portanto, é criar e não apenas recriar. É partir de um estímulo e construir falas, reações, cenas, um universo dentro de nossa cabeça. A memória assim descrita não é uma mentira, mas uma ficção. E é bonito, mais do que neurótico, imaginá-la a partir da possibilidade fabulativa que a constitui.
Muito antes de viver o meu luto profundamente, Manuel Bandeira chegou a mim, meio que pela época do cursinho (portanto há 20 anos) e seu poema de finados. Estes foram os primeiros versos que consegui declamar de cor. Gostava e fazê-lo e ia modulando a narração conforme encontrava melhores ênfases em determinadas sílabas, fazendo de cada declamação uma construção de significado específica. Veja, em retrospecto, é como seu eu fosse a procura de pistas que me levassem a compreender uma sensação dolorosa pela qual nem sonhava em passar. Como se tentasse me preparar hoje a partir do que eu fantasio sobre as maneiras pelas quais fui me aproximando deste tema que me tem sido caro (e ambíguo).
Equivocadamente, acreditamos, ainda inexperientes na lida com a morte, que o luto é uma fase decorrente da perda de uma pessoa querida, assim, simplesmente, e deve ser superada ao longo de um certo período de tempo, meio incerto socialmente, mas certamente apontada como necessidade para seguir o que virá pela frente. Minha vulgar definição acima não se baseia em teoria ou dicionário, mas no conhecimento compartilhado socialmente o qual herdamos culturalmente, assim, sem questionamentos, reflexões ou discordâncias. No entanto, é a partir da vivência dessa cadeia de reações que nos vemos frente à necessidade de reavaliar suas demandas, contornos e definições, compreendendo a fim de acomodar o constante desconforto proveniente, muitas vezes, da inadequação do que nos é esperado, mesmo que pelo eco daquilo que nos foi ensinado.
Daqui apresento mais uma das minhas referências poéticas do luto, Elizabeth Bishop e sua One Art. Este me chegou mais tarde, por volta dos 30 anos (mais precisamente no meu aniversário de 32). Um amigo me deu de presente, no meio de uma comemoração, a declamação de um poema em espanhol e eu o questionei sobre quais eram as estratégias para memorizá-lo. Depois de escrevê-lo a mão, passei a memoriar um verso por vez, depois uma estrofe a cada período e, ao fim de pouco tempo, memorizei cada uma das palavras. Eu havia ficado admirada ao conhecê-la por meio do filme Flores Raras e a cena de conclusão e leitura do poema é das imagens mais tocantes no encontro entre cinema e literatura.
Para mim, este poema virou uma ode às minhas dores do luto do meu primeiro casamento, e a sensação dilacerante de me ver esburacada de mim mesma. Lembro das centenas de sessões de terapia daquele fatídico 2018 nas quais me debulhei e me esparramei neste tema, consumindo grandes quantidades de caixas de lenço do meu analista, alternando a dor entre a solidão de ter também rompido como uma parte de mim e a raiva de me encontrar num buraco pela desilusão e morte de um tipo de amor que não parece conseguir ser reconstruído depois de uma experiência como esta.
O que nos faz retomar o fôlego é exatamente a magia que a arte nos causa ao apresentar, fora de nós, imagens que podem fazer com que compreendamos nossas dores, num duplo trabalho de nos encantar e nos oferecer identificação. É por meio das possibilidades narrativas, visuais ou literárias, que podemos nos reconciliar com os nossos sentimentos, encontrando formas de nomear essa cadeia de ações e reações com as quais passamos a lidar no instante imediato que a perda se dá. É até uma forma de consolo, meio como encontrar uma voz compreensiva que de certa maneira compartilha a mesma dor que nos aflige, ao mesmo tempo faz parecer uma trégua da angústia tão particular, íntima para esta apresentada do lado de fora. A arte é como uma mentira que nos faz perceber a verdade, ao menos esta que nos é oferecida a entender. E é também por meio de seu transbordamento, de seu caráter particular e universal que experimentamos um estado meditativo e observador com relação às aflições.
Nas nossas histórias de fantasmas, as conversas com nossos mortos, as homenagens aos amores passados, aos espaços vazios de nossos amigos e familiares, invocamos nossa memória e imaginação não apenas para retomar e redesenhar o que foi vivido, mas costurar imagens e sons do que faz do presente um espaço/tempo por meio da perspectiva da ausência presente. São os diálogos que remonto e aqueles que invento o meu espaço presente com que convivo por falta. E os buracos deixados pela impossibilidade de resposta uma miríade de significações que cabem a mim escolher e preencher.
Obrigado.
Que lindo - delicado e profundo - texto lindo, Má! Amei!